O jornal Clinical Epidemiology and Global Health publicou, em sua última edição, o artigo HIV/AIDS among children in Ratodero, Pakistan amidst the Covid-19 pandemic: Challenges, efforts, and recommendations, que analisou os desafios e esforços empregados para lidar com o HIV/AIDS entre crianças em Ratodero, Paquistão, durante a pandemia de Covid-19, além de abordar medidas que podem ser tomadas para controlar a doença na população infantil.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 38 milhões de pessoas em todo o mundo vivem atualmente com HIV/AIDS, entre as quais 1,7 milhões são menores de 15 anos. Infelizmente, aproximadamente 36,3 milhões de pessoas sucumbiram à doença até agora. A maioria dos óbitos de crianças e adultos ocorreu na África, Ásia e Pacífico. Embora o número total de mortes relacionadas à AIDS tenha diminuído de 900.000 em 2015 para 680.000 em 2020, 1,5 milhão de novas infecções foram registradas no ano passado, com uma média de cerca de 4.000 novas infecções por dia. Somente em 2020, por volta de 150.000 novas infecções por HIV foram registradas em crianças com menos de 15 anos.
Leia também: Crianças acima de 6 anos que vivem com HIV têm nova opção de tratamento
Nas últimas décadas, o Paquistão registrou um aumento alarmante dos casos de HIV, e o número de mortos aumentou. De acordo com o relatório da Pesquisa Nacional de Saúde, o país tem cerca de 150.000 pacientes com HIV. Ao contrário de muitas outras doenças infecciosas, o HIV tem uma baixa prevalência no Paquistão, especialmente entre crianças. No entanto, no primeiro estudo epidemiológico de dados de 930 pacientes HIV-positivos diagnosticados em Ratodero, uma pequena cidade na província de Sindh, entre 24 de abril e 15 de julho de 2019, quase 80% dos casos acometiam crianças com menos de 5 anos de idade.
Os autores do artigo descreveram que as infecções por HIV em crianças paquistanesas foram associadas ao recebimento de injeções múltiplas (as mesmas seringas foram usadas repetidamente em uma ou mais crianças por profissionais de saúde como parte do tratamento). Isso levou a um aumento na transmissão do HIV devido a esta iatrogenia. Em 22 de dezembro de 2019, foram identificados 1.221 novos casos de HIV, 970 dos quais em crianças, com o possível aumento do número devido ao aumento da taxa de rastreio. De acordo com o Sindh AIDS Control Program (SACP), 42.533 pessoas foram avaliadas até 30 de novembro de 2020, e 1.438 foram consideradas HIV positivas e registradas no Ratodero ART Center. Entre elas, havia 1.076 crianças no total, sendo 666 meninos e 410 meninas. O SACP anunciou que 34 crianças e quatro adultos morreram devido ao surto na cidade.
Desafios
A renda familiar média mensal no Paquistão é de cerca de US$ 260, mas a maioria das pessoas em Ratodero se sustenta com muito menos. O custo de medicamentos genéricos para um paciente com HIV no Paquistão variava, há 15 anos, de US $ 300 a $ 500, que teria aumentado se a inflação tivesse sido contabilizada ao longo do tempo. A maioria da população de Ratodero acha difícil viver confortavelmente enquanto cuidam de uma criança soropositiva, pois isso aumenta a tensão financeira de uma família local.
- Barreiras ao acesso e adesão à terapia antirretroviral (TARV)
Apesar de terem sido desenvolvidos 45 centros de tratamento de HIV nas quatro províncias do país, os pacientes frequentemente têm que viajar longas distâncias para receber o tratamento necessário e pagar do próprio bolso para cobrir despesas de viagem. Há falta de especialistas em doenças infecciosas. Os médicos e outros profissionais de atenção primária carecem de experiência e treinamento no manejo de crianças HIV-positivas.
- Possibilidade de esgotamento do estoque de TARV
A TARV não é produzida no Paquistão e deve ser importada por meio de um mecanismo de apoio estabelecido pelo Fundo Global de Luta contra a AIDS, Tuberculose e Malária no país. As formulações pediátricas são suscetíveis a rupturas de estoque, pois os volumes do suprimento necessário podem não ser tão altos quanto os de adultos, levando a inadequações no planejamento de cadeias alternativas de suprimento em casos de escassez.
É um sério problema de saúde global que pode afetar os resultados do tratamento do HIV em países de baixa e média renda com sistemas de saúde fraturados, acesso limitado aos cuidados, escassez de regimes de TARV de segunda linha e vigilância viral abaixo do ideal. A resistência à TARV pode minar o objetivo Fast Track do UNAIDS de acabar com a AIDS até 2030.
A pandemia teve um impacto adverso na assistência global de saúde e prevenção, e o Paquistão não é exceção. O país registrou 1.004.694 casos confirmados de Covid-19 e 23.016 mortes em 25 de julho de 2021. Pessoas vivendo com HIV com doença avançada ou sem medicação podem ter maior risco de infecção pela Covid-19.
Esforços
O SACP e o Departamento Provincial de Saúde (DOH) lideraram a resposta ao incidente das seringas contaminadas. Parceiros da Organização das Nações Unidas (ONU), do Programa de Treinamento de Laboratório e Epidemiologia de Campo do Paquistão, da Universidade Aga Khan e outros contribuíram para a elucidação dessa intercorrência.
- Novo centro de tratamento
O Hospital Infantil Shaikh Zaid em Lahore abriu um novo Centro de Tratamento de TARV para crianças.
Laboratórios, bancos de sangue e clínicas que não foram aprovados foram fechados.
- Missão liderada pelo Ministério Federal da Saúde e pela OMS
Ao longo do primeiro semestre de 2019, foi realizada uma missão liderada pelo Ministério Federal da Saúde e pela OMS, com a ajuda de outros parceiros da ONU e do meio acadêmico. Os objetivos eram classificar as fontes e cadeias de transmissão do HIV, mapear áreas de alto risco e identificar lacunas na detecção, cuidado e tratamento do HIV. Como resultado desses esforços, a origem do surto foi detectada. As autoridades mapearam muitas famílias de volta a um único médico, graças às ações e investigações mencionadas. Os autores mencionam que as autoridades prenderam o médico no final de abril de 2019. Como as agulhas podem facilmente transmitir vírus, como HIV e hepatite C, a reutilização de seringas em instalações médicas é estritamente proibida. No entanto, os autores relatam que as seringas ainda são reutilizadas no Paquistão, embora seja ilegal.
Recomendações
Alguns pacientes se deslocam por até 7 horas para receber tratamento no Hospital Aga Khan, que é a única instalação médica confiável na região. Com o apoio das agências da ONU, da OMS e dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC), unidades de atenção primária à saúde eficazes devem ser construídas na área para aliviar o fardo das famílias. Além de abastecer a unidade apenas em curtos períodos de tempo pré-determinados, os serviços de emergência também devem ser disponibilizados 24 horas por dia, sete dias por semana, pois as mortes também podem ser decorrentes da indisponibilidade de serviços de emergência de rotina. O sistema de saúde deve ser mais cooperativo e a administração deve ser responsabilizada por qualquer assistência insuficiente que possa ser prestada.
- Educação médica continuada
Os médicos devem ser avaliados regularmente para garantir sua competência e alinhamento com a educação e os padrões médicos atuais. Antes de ser exigida uma licença para praticar a medicina, o bem-estar físico e mental dos médicos também deve ser avaliado.
Incluem kits e seringas descartáveis esterilizadas adequadamente, com descarte apropriado.
Uma pequena contribuição financeira pode fazer uma grande diferença para ajudar uma família em dificuldades. De acordo com um relatório, a renda per capita média é inferior a 879 PKR por mês, que está abaixo da linha de pobreza nacional. O governo também pode ajudar a cobrir as necessidades básicas, como alimentação, moradia e saúde para famílias que atualmente estão abaixo da linha da pobreza.
- Outras:
- Aumento no número de centros de tratamento de HIV;
- Operação de todos os centros de tratamento de HIV sob a orientação de um especialista em doenças infecciosas (considerar telemedicina, se possível);
- Aprimorar o treinamento da equipe nas Diretrizes Nacionais para TARV e também auxiliar os profissionais de saúde na seleção de regimes adequados;
- Expandir a genotipagem para resistência aos medicamentos para HIV (vigilância molecular);
- Melhorar o aconselhamento sobre TARV;
- Advogar e garantir profissionalismo em centros de tratamento de HIV em todos os níveis para proteger a privacidade e os direitos humanos de pacientes e suas famílias;
- As crianças também devem ser ensinadas sobre a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e que exames regulares devem ser feitos para prevenir um surto futuro.
Conclusão
Os pesquisadores destacam que, dado que a maioria dos indivíduos soropositivos vive na periferia de cidades e regiões centrais, pode valer a pena investigar até que ponto as medidas preventivas relacionadas à Covid-19, como distanciamento social, uso de máscara e higienização das mãos, estão sendo adotadas de forma realista. Ao lidar com a pandemia, eles enfatizam o fato de que não devemos negligenciar as vulnerabilidades biológicas e sociais das pessoas que vivem com HIV nestes tempos difíceis, especialmente no contexto de estigma e preconceito generalizados associados à doença, bem como serviços de saúde limitados.
Comentário
O artigo de Mohan e colaboradores, bastante impactante, reflete uma realidade não somente do Paquistão, mas presente em muitas outras nações. Em julho, um relatório lançado pelo UNAIDS e parceiros apontou que o progresso para findar a AIDS entre crianças, adolescentes e mulheres jovens foi paralisado e nenhum das alvos para o ano de 2020 foi alcançado. O documento, inclusive, relatou que o número total de crianças recebendo tratamento para HIV diminuiu pela primeira vez. Ademais, mais de um terço das crianças nascidas de mães soropositivas não foram testadas. Dessa forma, aproximadamente 50% das crianças que vivem com HIV morrem antes de completar dois anos de vida. Por fim, o documento descreve que as crianças têm cerca de 40% menos probabilidade do que os adultos de receber tratamento e são responsáveis por um número desproporcional de mortes. São cerca 1,7 milhão de crianças vivendo com HIV (somente 5% de todos os indivíduos que vivem com o vírus), entretanto, correspondem a 15% de todas as mortes relacionadas à AIDS.
De fato, a TARV é geralmente cara e não há acesso suficiente a testes de diagnóstico e tratamentos em países de baixa e média renda. Infelizmente, apesar do progresso global na prevenção da transmissão vertical e no avanço da medicina, um alto número de infecções pediátricas e óbitos ainda ocorre em alguns países em desenvolvimento.
O Dia Mundial da AIDS é celebrado anualmente em 1º de dezembro, desde 1988, em todo o planeta. É uma oportunidade para as pessoas em todo o mundo se unirem na luta contra o HIV, apoiar as pessoas que vivem com o vírus e homenagear aqueles que morreram de uma doença relacionada à AIDS. O tema da campanha de 2021 é “Rock the Ribbon” (“balance a fita”).